terça-feira, 10 de março de 2009

Diversidade na espiritualidade da Índia

Verdade ou verdades?

O que mais gosto na Índia, no “hinduismo”, e em particular no yoga é o facto de não ser uma cultura, e sim muitas. Muitas diferentes, até contraditórias.

No ocidente, e particularmente na Europa, e mais gravemente na Europa mediterranea da qual Portugal é um prolongamento, nós fomos formatados durante muito tempo por uma verdade demasiado... monista. Um Deus, um salvador, uma igreja. Logo, uma verdade. Isso deixou sequelas. As pessoas ficaram formatadas nessa forma de pensamento único, mono. Ficaram marcadas com a ideia de uma verdade absoluta. Uma verdade, só uma, que excluí todas as demais. Com violência se for preciso. Nunca vi as coisas assim. Talvez por que fui exposto desde pequeno a influências muito diversas, talvez porque sou filho de um advogado, e fui estudante de Direito, e por isso sei que a verdade é algo que se discute, que alguém decide, mais ou menos arbitrariamente, por crença, ou por equidade, por interesse... Chamem-me relativista, não me importa. Para mim é quase um elogio. Cada homem tem a sua verdade, em cada momento. E se estamos absolutamente convencidos de algo, entao isso é verdade absoluta, para nós, pois afasta dúvidas e outras possibilidades de verdade. Para nós. Ou seja, a verdade é absoluta não porque seja universal, para todas as pessoas, mas porque é óbvia e evidente para cada um. “A verdade é aquela da qual temos consciência” nas palavras de DeRose. “Tudo está absolutamente certo”, digo eu. Isso para mim sao verdades absolutas.

Voltando ao hinduismo, ás varias culturas que ali co-existem. O facto de haver tanta diversidade cultural chega a ser confuso e dificil para um ocidental que vai a procura de uma verdade ultima e singular. Mas na Índia culturas mais ou menos contraditórias coexistem dentro do próprio hinduismo. E co-existem de uma forma mais ou menos confortável. Porque nao Índia não existe só uma grande igreja dominante, um só papa. O que há sao milhares de seitas cada uma com um ou mais gurus, a maioria delas pequenas, portanto com pouco ou nenhum poder coercivo, e que se vêm obrigados a conviver com as outras 108 seitas e suas verdades. Aqui seita não é algo heretico e perigoso, porque não há um padrao que se imponha como verdade da qual dissidir. Ser diferente é algo comum, e as seitas, desde as micros às um pouco maiores sao a própria estrutura organizacional do hinduismo. Acho isso maravilhoso. Na Índia a verdade revela-se numa grande multiplicidade de formas, e é essa variedade que dá todo aquele colorido que me fascina. Não é uma cultura univoca, antes me abre um oceano de alternativas, possibilidades diferenciadas nas quais me posso perder e reencontrar várias vezes, e em ultimo caso, através das quais me posso perder e encontrar a mim mesmo.

No caso do yoga toda essa diversidade revela-se em todo tipo de pormenores. As praticas recomendadas e realizadas sao do mais diverso, alternativo e até e contraditório. As filosofias que envolvem essas praticas também primam por uma riquíssima variedade. Dentro de uma corrente filosofica há sempre várias correntes discordantes, e sobretudo muitas interpretaçoes diferentes, seja dos textos que lhes servem de fonte, seja na forma de ensiná-los, seja na meta que tudo supostamente tem. Os professores que ensinam (os gurus) sao personalidades dos mais diversos. Há do tipo academico e intlectual e também analfabetos. Há os que vivem numa caverna aos que sao epicentro de um ashram, ou até de todo um movimento religioso, social e politico que move milhoes e milhoes. Desde o que fala muito, ao que permanece em silencio absoluto. Os extremamente bem humorados, e os sisudos e rigidos ao tipo militar. Há os humildes, os que se fazem humildes, e os que não sao humildes, ou pelo menos tentam não se mascarar de humildade! O ambiente natural, cultural e social em que tudo se processa também pode ser diversificadissímo. É muito normal um guru defender que o celibato é a melhor opçao para a evoluçao espiritual, e outro prescrever sexo como parte do caminho espiritual. Um vai exortar uma pratica fisica intensissima que o fará suar abundantemente, outro vai defender que isso é himsa (agressao) e antes deveriamos abandonar todas as praticas fisicas, no seu todo, porque elas vao distrair-nos da contemplaçao do espirito que fica para além das formas. Um professor vai dizer-lhe para concentrar-se no corpo, "open eye meditation frist", outro para sentar-se e cruzar as pernas e simplesmente observar a respiraçao por várias horas por dia, outro vai dizer que é melhor fazer auto estudo enquanto trabalhamos, outro dirá que so meditar no nome de Deus produzirá resultados, outro dirá que tudo isso é demasiado complicado e moroso, é melhor fazer meditaçao instantanea, a meditaçao do riso, "lets fake it until we make it", e outro ainda dirá que qualquer tecnica ou esforço de meditaçao é desnecessário e desaconselhavel porque nós já somos a iluminaçao que procuramos. Mesmo dentro de uma mesma escola de yoga é comum vários professores terem divergência de opinioes, seja quanto à interpretaçao e exposiçao de uma filosofia, seja quanto á execuçao ou ensino de uma técnica, seja quanto à relaçao a estabalecer entre professor e aluno, seja quanto a... tudo! Não é por acaso que dois mestres famosos nunca coincidem no mesmo sitio. Se um discipulo, ou co-discipulo, se destaca invariavelmente sai e vai formar a sua escola, o seu grupo, a sua seita, a sua verdade com mais ou menos variantes quanto a meios e fins. E seja lá qual for o ensinamento todos se dizem perfeitamente defendidos por uma imensidao de textos e gurus, sejam antigos ou modernos. E é muito comum cada guru acrescentarem o seu próprio texto à já muito extensa e rica coleçao que substancia os diversos aspectos do yoga e do hinduismo. Uns sao mais originais e acrescentam algo aparentemente novo, ou reformulado. Outros sao mais comedidos e acrescentam apenas a sua interpretaçao. Seja como for, em todos os lados, gurus e principalmente os seus zelosos seguidores assegurarao que o seu é o único, ou pelo menos o melhor, o verdadeiro caminho para Deus, para a iluminaçao, para a paz e felicidade, e tendem a ficar ansiosos e até beligerantes, ou pelo menos sarcásticos, quando se mencionam pontos de vistas divergentes e concorrentes. Mas é mesmo assim, geralmente não passa disso. Se não gosta dirija-se a outro ashram, a outro guru e pronto. Ou funde o seu...

Tudo isto pode parecer loucura, algo tonto e pitoresco, como se fosse uma espiritualidade sem raizes nem rumo, perdida. Para quem vem a procura de respostas rápidas, certas, confiávíes, para quem tem falta de confiança e procura segurança isto pode ser um inferno. Ou uma soluçao fácil. Mas não é, nem uma coisa nem outra. Para mim é precisamente o ponto forte da Índia, do hinduismo e do yoga é haver várias fontes alternativas, e possibilidades para escolher, para exercer a liberdade, para nos podermos enquadrar conforme as nossas diferenças. É como se a Índia, o hinduismo e o yoga fossem um Uni & verso, que contem a totalidade em si mesmo. Tudo já se especulou, experimentou, e continua a especular-se e experimentar-se continuamente, sem limites.

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